Uma das coisas mais fascinantes no estudo uma língua com mais de 2000 mil anos de história como o grego é acompanhar a transformação de certas palavras.

O termo noús (ou nóos), por exemplo, central para a Filosofia e a Patrística, comumente traduzido por intelecto.
Em Homero, o seu verbo correlato, noéin, indica a percepção mais profunda de uma situação, muitas vezes contra uma primeira impressão.

É uma percepção súbita, diversa do pensamento discursivo.

O insight diante de uma situação que, quando ocorre, sempre alcança a verdade.
A partir daí, temos os outros sentidos:

O noús pode indicar a faculdade responsável pelo noéin ou o seu produto, o pensamento. Ou o plano que se faz a partir dele.

Ou ainda, toda a visão de mundo de um indivíduo ou povo (Homero diz que Odisseu conheceu o nóos de muitos povos).
Entre os pré-socráticos, Xenófanes afirma que o nóos do deus move todas as coisas, mas também que o seu nóema (o seu pensamento) é diferente do dos mortais.

Da percepção de uma situação em Homero, o noús se torna a própria base da ordem cósmica.
Em Heráclito, é uma faculdade, rara entre os homens, capaz de alcançar essa ordem, esse lógos divino que é uma harmonia oculta, superior à harmonia manifesta.

Em Parmênides, uma ideia similar, mas radicalizada: ser (éon) e pensar (noéin) são o mesmo.
Ele passa, assim, a indicar tanto o fundamento divino da ordem cósmica quanto a faculdade humana capaz de alcançá-lo.

Em Anaxágoras, não será apenas uma faculdade do deus, mas o próprio ser que move todas as coisas e que faz surgir a ordem a partir do todo indiferenciado.
Platão desenvolverá as duas acepções do termo. No Timeu, falará sobre o noús divino.

Mas o fundamental, para ele, é o noús humano. Pois é a nossa faculdade capaz de alcançar a realidade inteligível.

É o que em nós se abre para o eterno e o universal.
Também em Aristóteles:

Seu Primeiro Motor é um noús que pensa a si mesmo. E o noús humano é o ápice de sua teoria da alma:

o noús poietikós (intelecto agente, para os medievais) é o que na alma não depende do corpo.
É por isso que é a partir da noção de noús que os comentadores, desde Alexandre de Afrodísia e Temístio, passando por Averroes e S. Tomás de Aquino, debatem se, na filosofia aristotélica, há uma defesa da imortalidade da alma.
Mas é nos neoplatônicos que a noção atinge o ápice de seu desenvolvimento.

Em Plotino, o Noús é o próprio mundo inteligível que pensa a si mesmo (ele é, ao mesmo tempo, a totalidade das formas inteligíveis e o intelecto que as pensa).

É a segunda hipóstase de sua metafísica.
Também o ser humano tem um noús, que é a parte da alma que não desceu ao mundo sensível, mas permaneceu no inteligível.

O caminho místico de Plotino passa pela tomada de consciência da realidade deste noús que está em nós.
Apesar das semelhanças terminológicas, a mística dos Padres gregos, como notou Vladmir Lossky, é radicalmente diferente da dos neoplatônicos.

Os termos, aqui, são enganosos.

Nos Padres, o caminho espiritual depende do noús, mas ele não é o intelecto dos platônicos.
Ele é a parte da alma que abre para as enérgeiai divinas.

Não mais a faculdade capaz de alcançar o inteligível, mas o caminho para alcançarmos o próprio Deus que está para além de toda e de todo entendimento.
O noús patrístico é a faculdade, no homem, capaz de transcender o noús platônico.

É nosso coração espiritual, a ultrapassar toda inteligência e toda inteligibilidade.
(a partir de um prefácio que estou escrevendo).
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