Não há patriotismo de ocasião que me faça ver graça, engenho, epopeia e arte em uma independência que preservou a escravidão, o latifúndio e a monarquia. Não paga a minha cerveja. Costumo, no meu calendário particular, louvar o 23 de abril, dia de saravar Ogunhê em Jorge, +
e nascimento de Pixinguinha, como data maior brasileira. Distante das margens plácidas, o São Pizindim se tornou, no fuzuê entre batuques africanos e sopros das Europas e outras Américas (devidamente temperados com a pimenta daqui), um dos inventores do país em que acredito. +
Como escrevi faz tempo, quem sacou este Brasil que estamos vendo hoje, o oficial, o do 7 de setembro, sem saber que estava sacando, foi Tancredi, o princípe de Falconeri, na frase mais famosa do Leopardo: é preciso que tudo mude para que as coisas permaneçam iguais. +
Por aqui um português proclamou a independência, um marechal monarquista proclamou a República, oligarquias fizeram uma revolução para derrubar as oligarquias, um ministro do Estado Novo virou o presidente da redemocratização no final do Estado Novo... +
Ao mesmo tempo, nas frestas, há o Brasil que mora no ponto de boiadeiro: Boiadeiro laça vento / Na linha do laçador/ Se não tem vento, invento/ o vento que me laçou. Um Brasil que inventa vida no vazio, que pode ser do desânimo, mas pode ser o do sincopado do samba. +
Um Brasil de discursos não verbalizados, burladores das cultas gramáticas, manifestado em corpos que transitaram o tempo todo na desafiadora negação da morte, como corpos-cavalos das canjiras de santo e giras de lei. +
Há quem tenha ouvido o grito do Ipiranga às margens plácidas. Há quem escute o grito de aguerés, cabulas, muzenzas, xibas, calangos, pandeirões, barraventos, avamunhas, satós, ijexás, ibins e adarruns. +
Há quem tenha anunciado o Império do Brasil e aclamado o Príncipe Dom Pedro. Há quem tenha anunciado o mestre condutor de Arôni, o Katendê dos bantos, e o Príncipe da Jurema sagrada, José Pelintra. +
A luta é nas ruas, nas rimas, nas escolas, nas artes, mas também nos corpos: precisamos de corpos libertos do projeto domesticador, normatizador e disciplinador que se inscreve no domínio dos corpos adequados para o consumo e para a morte em vida. +
Precisamos de outras vozes, musicadas, atravessadas. E precisamos da sabedoria dos “cumbas” e de suas artimanhas de viver produzindo encantarias libertadoras no precário. Eu ouço vozes, discursos e histórias em cada tambor que toca para acordar o mundo. +
Navizala cavalga o vento, o agueré é o meu manifesto, o cabula é a minha escritura, o sax de Pixinguinha é meu hino nacional e o alujá é a minha reflexão teórica sobre a liberdade, às margens do rio imundo que corre perto de casa: o rio Maracanã, meu amor, de merda. +
Sem espadas ao alto, sem o "já raiou a liberdade", ainda insisto em colocar na água suja da aldeia, todos os dias, meu barquinho imaginado em que escrevo apenas independência e vida!
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